sábado, 9 de maio de 2015

Meu Monstro de Estimação.

Meu monstro de estimação


Durante toda a infância escutamos nossos pais falando sobre monstros que habitam nossos guarda-roupas, mas será que eles realmente existem?

Naquela época, gostaria de não ter sido tão questionador e simplesmente ter brincado com as crianças da minha idade, escondendo-me a noite debaixo das cobertas por causa de um suposto monstro que me comeria enquanto eu dormia. Mas eu nunca havia sido uma criança normal.

Com apenas quatro anos, problemas simples de matemática e até as formas mais complexas de geometria eu reconhecia. Sabia ler, escrever, contar... Eu pensava, muito mais do que qualquer outro ser vivente de minha idade, porém meus pais, querendo darem-me momentos de normalidade, contavam-me histórias fantasiosas sobre um universo paralelo além dos portões que se escondiam através da madeira das portas de meu armário.

Eu lembro-me daquele dia... O dia que mudaria completamente minha vida, daquele momento em diante. Eu havia acabado de subir as escadas, lentamente, ainda com as frases do novo capítulo contado da história improvisada por meus pais, mas eu não possuía conhecimento disto na época. Lentamente, com medo e receio, eu abri as portas de meu quarto, sendo prontamente recebido por um único feixe solitário de luz que provinha de uma pequena lamparina a óleo que queimava lentamente ao lado da porta. As sombras formavam monstros que se apresentavam, rastejando e arranhando as paredes com suas unhas espectrais. Mas eu não tinha realmente medo, pois na minha cabeça, onde a razão havia sempre dominado, aquilo era apenas um jogo de sombras. Ou pelo menos eu tentava me convencer disto.

Hesitante, meus pés iam lentamente em direção à minha cama, evitando todos os espaços sombrios onde eu não conseguia ter a certeza de que houvesse a completa ausência do que quer que minha mente precipitada julgasse existir. Minha cama estava a poucos passos de distância e, com uma habilidade que não possuía, minhas pernas instintivamente prepararam-se para um pulo planejado em meu subconsciente, fazendo com que o resultado fosse nada mais do que minha queda por cima de meu colchão macio. Em tempo recorde, meu corpo pequeno se escondeu debaixo das cobertas.

Sei que naquela época meus pais se esmeravam em fazer o que achavam melhor para mim, mas eles não possuíam o conhecimento de quão poderosas podiam ser suas palavras. E o quão tenebrosa podem ser os monstros saídos da cabeça deturpada de dois escritores de terror.

- Peter, boa noite, querido – disse minha mãe carinhosamente, aparecendo com seu longo cabelo ruivo por uma das frestas da porta enquanto se inclinava para que com um sopro, a única fonte de luz no local se extinguisse.

Lembro-me do terror que senti naquele momento. O modo como minhas mãos tremiam e minha respiração saía em lufadas descompassadas era inacreditável. Lembro-me também que aquela noite foi a primeira de muitas que se sucederam em um terror absoluto.

Lembro-me que meus olhos pregavam-se instantaneamente na janela, sempre, onde uma fraca camada de luz prateada era concedida ao meu quarto sombrio. Lembro-me que aquela primeira noite a lua apresentava-se magra no céu, com apenas uma fatia delgada despontando seu esplendor; lembro-me do vento que açoitava as árvores ao nosso redor e o modo como desejava amargamente estar em uma casa no meio a cidade, onde não precisava ouvir o som lamurioso do uivo de um lobo solitário, que parecia cortar minha alma nos mais fragmentados pedaços.

Foi então que aconteceu... Primeiramente apenas o suave toque em minha janela encoberta por uma sombra incomum. E isso se repetiu no dia seguinte, e no próximo dia, e no que veio depois...

Em minha mente, tentava a todo custo convencer-me de que não passava de um galho intrometido tocando minha janela, mesmo que a árvore mais próxima ficasse a dez metros de nossa casa. Ou quem sabe fosse um morcego... algum inseto estúpido... qualquer resposta era válida, mesmo que nenhuma me deixasse menos aflito.

Mas é claro que não comuniquei isso aos meus pais. Não queria os deixar preocupados ou com peso na consciência devido à suas histórias. Na realidade, eu gostava delas.

Nos dias que se sucederam, o barulho ficava cada vez mais insistente, mais alto, mais aterrorizador... E eu tentava me convencer de que fosse apenas fruto de minha imaginação fértil e que o responsável não era aquela sombra sinistra e vacilante que a cada vez que eu deitava para dormir, apresentava-se como um Deus.

Depois de algum tempo, comecei a trocar o dia pela noite. Quando o sol ainda se expunha no céu, eu dormia em uma tranquilidade digna de nota, porém, quando ele desaparecia, o terror mais ínfimo se alojava abaixo de minha pele e meus olhos não conseguiam nem piscar, sendo condenados à vigília de um monstro que talvez habitasse apenas meu subconsciente. Meus pais se preocuparam a princípio, levando-me a médicos que não conseguiram desvendar supostamente o problema que parasitava meu corpo... porque não havia problema, além do meu terror atípico pelo monstro que me espionava dormir.

Lembro-me que mais de um mês havia se passado desde a primeira aparição do ser de sombras, quando finalmente algo mudou. Como de costume, já havia me deitado, as luzes haviam se extinguido, e a lua pairava desta vez redonda e inflamada no céu, deixando que sua luz prateada comtemplasse tudo ao meu redor.

O ambiente pareceu se encher de uma penumbra etérea quando ele chegou e com suas garras tocou minha janela, arrastando-as pelo vidro e fazendo que o mais doloroso som ecoasse, perfurando meus tímpanos e fazendo-os sangrar. Um grito de dor escapou por meus lábios trêmulos, saindo como uma lamúria sussurrada.

Lembro-me o modo como um mundo de dor se apresentou a mim, enquanto ao fundo de minha mente perturbada um som suave ecoava repetidas e repetidas vezes... clique.

O rangido de minha janela sendo aberta puxou-me para uma realidade não menos dolorosa e lentamente, o que quer que seja o que eu via naquele momento, entrou em meu quarto.

Foi então que tive certeza que o Inferno existia.

Olhos rubros pairaram sobre mim, mais escuros que sangue seco e mais vívidos que uma labareda; seu corpo feito de densas sombras negras flutuava em minha direção com uma graciosidade errada.

Eu tremia, inconscientemente, dos pés à cabeça. E em uma tentativa falha, enterrei-me debaixo das cobertas, cobrindo minha cabeça enquanto repetia incontáveis vezes uma prece qualquer que não surtia efeito nenhum.
Sua risada ecoou no quarto em mau agouro, como um grasnar de corvo, cada vez mais perto... mais perto... mais perto... tão perto...!

Como se nunca tivesse existido, meu cobertor sumiu de cima de meu corpo, porém meus olhos continuavam fechados, com lágrimas escapando por entre as pálpebras e molhando meu rosto.

O terror mais absoluto era cravado em meu coração e o medo da morte eminente deixava tudo apenas mais terrível.

- Abra seus olhos... – Lembro-me daquela coisa dizer, com a voz rascante e taciturna, que me fazia sentir como se estivesse em queda livre e a Morte fosse minha única companheira. Talvez ela fosse.

Lentamente e hesitante, minhas pálpebras se abriram sem que eu lhes comandasse, deixando que meus orbes encarassem o pior dos demônios. Seus olhos rubros me atravessaram, estilhaçando minha alma e minha sanidade. Sua boca como a cratera de uma montanha, com os gigantescos e afiados dentes no mais deturpado sorriso eterno, enquanto seu hálito pútrido chegava em lufadas ao meu rosto.

Eu queria gritar, porém minha boca não me obedecia.

- Levante-se...

E como se a Morte controlasse meu corpo, minhas pernas ergueram-se ao chão, mantendo-se firmes enquanto internamente eu tremia. Meus pés seguiram sozinhos enquanto aquele monstro feito de sombras flutuava pela casa, passando pela sala, o escritório de meus pais, o quarto de hospedes e por fim parando na cozinha.

Com um horror crescente, me vi caminhando em direção ao fogão, puxando a mangueira de gás com tanta força que minhas mãos ficaram com pequenos cortes. O cheiro desagradável de butanocomeçou a preencher todo o local.

Novamente segui a Morte para onde quer que ela estivesse indo, capturando habilmente o Zippo de meu pai, deixando-o com a tampa aberta e vendo aquela pequena labareda dançar sedutoramente.

Ao chegar à rua, sentei-me na grama fofa enquanto o demônio que me acompanhava repousava suas garras fumegantes por meu ombro.

Lembro-me de olhar para a casa, chorando silenciosamente e esperando que o inevitável acontecesse, com a presente vontade de gritar sendo sufocada por minha própria voz.

Os vidros da casa explodiram e as chamas consumiram todas as lembranças que eu tinha daquele lugar que fora meu porto seguro durante anos. Então os gritos começaram, e eu finalmente soube o quão terrível é a sensação de se sentir impotente, de não conseguir mover o próprio corpo.

E a esmagadora culpa de ser o responsável.

- Eu estarei sempre aqui, Peter. Sempre aqui...

Essas palavras, proferidas por aquele demônio, nunca desapareceram de minha mente.

Atualmente, vinte anos depois, tudo o que aconteceu durante aqueles dias de terror ainda assombram minha mente como o mais obscuro fantasma. A culpa esmagadora ainda consome meu peito, mas já me conformei com a situação.

- Vamos, é a sua vez de jogar – disse para o monstro de sombras que ocupava o lugar à minha frente.

A Morte jogou uma de suas cartas, olhando atentamente para meus olhos, evocando aquelas mesmas lembranças que eu tentava esquecer.

- Ainda não sei como o senhor faz isso, Sr. Peter – murmurou a enfermeira da clínica psiquiátrica, olhando abismadamente para as cartas que em sua visão moviam-se sozinhas.

- A morte está entre nós, mais perto do que imaginamos. E nunca vai embora...


Via:Contos de terror

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