sábado, 27 de junho de 2015

Dia da Caça, Noite do Caçador.

Ele se tornara uma espécie de lenda urbana. Pouquíssimos sabiam o seu verdadeiro nome, mas a lenda possuía muitos: era chamado de Cirurgião, de Anjo da Morte, Ceifador, Demônio, Doutor Morte ou - seu favorito - O Artista.
Nos anos de chumbo da ditadura, ele era ainda bastante jovem, mas já fizera sua fama. Levara a tortura ao estado-da-arte. Ninguém conseguia ocultar nada dele. Ninguém conseguia mentir para ele. E ninguém sobreviveu para confirmar que ele era real. Os militares negavam sua existência, obviamente. Mas quando a Operação Condor (1) começou, ele foi emprestado para os outros governos ditatoriais, e a lenda se espalhou pela Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai.
Talvez a grande diferença entre ele e os outros fosse a motivação: alguns estavam naquela vida por ideologia, outros por obrigação militar, outros por puro sadismo. Ele fazia aquilo pela arte.
Sistemático. Metódico. Perfeito.
Quando a ditadura acabou, recebeu uma generosa aposentadoria. Afinal, num mundo democrático, seu talento não seria devidamente valorizado.
Ficou feliz, de certa forma: livrava-se do aborrecimento de ter que extrair informações. Queria fazer aquilo puramente pela arte.
Sistemático. Metódico. Perfeito.
Estudou cuidadosamente onde iria se estabelecer dali por diante. Foi quando encontrou aquela fazenda: era perfeita!
Ficava bem longe das pequenas cidades vizinhas, mas a estrada que passava a frente de sua propriedade lhe traria os incautos que serviriam de material base para a sua arte.
Ao fundo, o gigantesco e profundo lago de uma hidrelétrica permitiria que suas obras desaparecessem sem deixar vestígios incômodos.
Elaborou o seu roteiro e o seguia a risca. Disfarçado de policial rodoviário, fazia falsas blitz onde parava os carros até encontrar alguém que estivesse viajando sozinho. Utilizando uma arma de choque, deixava a vítima inconsciente.
Depois de se divertir muito - tentava quebrar seu recorde, uma vez conseguira manter um militante da VAR-Palmares (2) quase vinte dias sob seus cuidados - sua vítima iria parar no lago da hidrelétrica, o veículo iria para a mão de receptadores e ele iria fingir para os moradores da região que era um sujeito absolutamente comum.
Sistemático. Metódico. Perfeito.
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O rapaz estava preocupado: se distraíra enquanto tentava terminar suas atividades daquele dia na universidade local. Quando deu por si, mais de uma hora e meia havia se passado. Agora dirigia em alta velocidade para chegar ao seu destino, antes que a noite chegasse.
O motivo de sua distração era fácil de entender: ao contrário dos outros alunos, não estudava com tanta dedicação para conquistar um diploma, mas para tentar encontrar um cura para o mal que o afligia.
A universidade local se tornara centro de referência mundial em estudos de terapias genéticas avançadas. E ele se tornara seu mais devotado aluno. Era sua última esperança de cura.
Porém, naquele final de tarde, sua sorte parecia não querer cooperar de forma nenhuma: à sua frente, um guarda rodoviário lhe fazia sinal para parar.
- Esqueceu o limite de velocidade, filho?
- Boa tarde, seu guarda! Olha, eu...
- Documentos do veículo e do condutor, sim?
"Droga", pensava o rapaz. "Esse pelo visto não vai ser fácil!"
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Fingindo analisar os documentos, o homem ponderava os riscos. De acordo com os documentos, o sujeitinho ali, além de estar sozinho, era estrangeiro, vinha da parte francesa do Canadá. Mas os adesivos no para-brisa e no vidro traseiro do carro mostravam que ele era aluno da universidade, o que poderia significar uma investigação mais rigorosa: a reitoria avisaria a embaixada do seu desaparecimento e haveria a pressão diplomática.
Mas tudo aquilo não iria detê-lo. Ao contrário, um pouquinho mais de risco dava um certo tempero a situação.
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Aquela demora estava enlouquecendo o rapaz. O guarda demorava demais sem fazer nada, apenas olhando para os documentos.
Quando o guarda finalmente se voltou na direção do carro, tinha um sorriso nos lábios. O rapaz não teve dúvidas: "O sacana está me segurando porque quer uma graninha. Espero que cinquenta reais resolva o problema, porque é tudo que eu tenho na carteira".
Mas a coisa estava longe de terminar:
- Desça do carro, por favor.
- Mas...
- Desça do carro, sim?
Saiu do carro, muito contrariado.
- Dê dez passos, em linha reta. Quero avaliar seu equilíbrio.
- Ué, seu guarda, cadê o bafômetro?
- Quebrado. Agora ande, por favor.
O rapaz resolveu cooperar, para ver se o guarda desistia logo. Deu dois passos e sentiu um violento choque elétrico atingir suas costas.
E tudo ficou escuro.
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Quando acordou, sua cabeça estava explodindo de dor. Demorou algum tempo até conseguir se lembrar do que tinha acontecido. O tal guarda rodoviário, claro.
Olhou em volta. Estava em uma espécie de sala de cirurgia improvisada. Tiras de couro prendiam pés, mãos e peito a mesa. Ao lado, uma mesinha coberta por um pano. Não precisava ser gênio pra saber que eram instrumentos de tortura.
Apesar da aparência jovem, ele já tinha visto muita coisa na vida. E a humanidade insistia em se repetir, especialmente no que tinha de pior.
"Bem, parece que sou a mais nova vítima de um psicopata" - pensou, conformado.
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Os últimos raios de sol da tarde iam lentamente dando lugar à noite. O homem entrou na sala e mostrou-se surpreso, visivelmente ele não esperava que o rapaz tivesse se recuperado tão rápido. Ainda assim, não disse nada. O silêncio ajudava a desestabilizar a vítima.
O rapaz também não pronunciou uma única palavra; sabia que o homem não estava ali para conversa. E, pela escuridão que via através da janela, os fatos iam falar por si mesmos.
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Apesar de concentrado em escolher por onde começar, o homem percebeu o leve brilho atrás de si. Ao se virar, deparou-se com uma cena insólita: os olhos do jovem brilhavam forte, um brilho de um azul pálido como o luar.
Pragmático, o homem virou-se e bateu em retirada. Não iria se arriscar: aquilo não era normal e ele não estava interessado em saber o que aquele brilho significava. Sua única preocupação era colocar-se em segurança. Praticando uma arte como a sua, precisava estar pronto para tudo. Saiu sem olhar para trás, dirigindo-se para um bunker que construíra para qualquer emergência.
Fez bem em sair logo dali. O brilho nos olhos do rapaz envolveu todo seu corpo. Suas mãos e pés começaram a se esticar. Seus pés dobraram-se de um jeito que apenas a parte frontal continuou tocando o solo. Nas mãos, suas unhas cresciam, tornando-se garras cada vez mais afiadas.
O tórax avolumou-se extremamente, tornando-se muito mais largo que o abdômen.
Mas era em sua cabeça que as transformações eram mais notáveis: as orelhas subiram para um ponto mais alto e se afilaram, tornando-se pontudas; a região da boca e nariz avançou para a frente, criando um focinho inexistente nos seres humanos, tornando sua aparência definitivamente lupina.
Todo o horror da transformação completou-se quando seus pelos cresceram , cobrindo toda a extensão de sua pele.
O ser humano se fora; só restava a fera.
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Confortavelmente instalado dentro de seu bunker, o homem observava a fantástica transformação do rapaz através de um circuito interno de TV. Definitivamente, não poderia ter planejado nada para uma situação como aquela: quem poderia imaginar que lobisomens existiam de verdade?
As paredes do bunker ficavam ocultas atrás de painéis de madeira maciça, reforçadas por chapas de aço com uma polegada de espessura. Pois a criatura atravessou essa proteção como se ela fosse feita de papel.
A rajada de balas de fuzil só serviu para deixar a criatura ainda mais furiosa. Demonstrando toda a sua agilidade de supremo predador, em poucos segundos o homem estava desarmado e o monstro o levantava do chão, suspendendo-o pelo pescoço.
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O que o homem jamais saberia é que os documentos do rapaz eram falsificados: na verdade, ele não era canadense, mas francês; aparentava vinte e três anos, mas já faziam mais de quinhentos anos que tinha essa idade, sua idade quando morrera pela primeira vez. A única coisa realmente verdadeira nos documentos do rapaz era o nome: Jean Pierre de Grenouille.(3)
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O homem estava surpreso: imaginava que a fera iria simplesmente estraçalhá-lo, mas o monstro se revelara um habilidoso torturador.
Preso à mesa onde tanto se divertira com suas vítimas nos últimos anos, o homem descobria surpreso como aquela besta-fera, aparentemente irracional, analisava com cuidado os instrumentos sobre a mesa e descobria como utilizá-los para causar o máximo de dor possível.
Seria uma longa noite para o homem, mas em um ponto ele se sentia honrado: aquele sim era o fim adequado para um artista como ele.
Sistemático. Metódico. Perfeito.
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Notas do Autor:
(1) Operação Condor - A Operação Condor foi uma aliança político-militar entre os vários regimes militares da América do Sul — Brasil, Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai e Uruguai — criada com o objetivo de coordenar a repressão a opositores dessas ditaduras instalados nos seis países do Cone Sul. Montada no início dos anos 1970, durou até a onda de redemocratização, na década seguinte. A operação, liderada por militares da América Latina, foi batizada com o nome do condor, ave típica dos Andes e símbolo da astúcia na caça às suas presas.(fonte: Wikipédia)
(2) VAR-Palmares - A Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) foi uma organização política armada brasileira de esquerda que combateu o regime militar de 1964. Surgiu em julho de 1969, como resultado da fusão do Comando de Libertação Nacional (Colina) com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) de Carlos Lamarca. Além de Lamarca, outros dois de seus mais famosos integrantes são o ex-Ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc e a Presidente Dilma Roussef. (fonte: Wikipédia)


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