sábado, 6 de junho de 2015

Palavras do Assassino.

Palavras do Assassino



A garota está correndo pelo milharal, mal consegue enxergar quatro palmos à sua frente. Seu rosto repleto de arranhões, constantemente lavados com suas lágrimas, e as mãos congeladas de medo. Uma sombra a persegue, porém, em suas rápidas olhadas para trás, não consegue formar uma imagem concreta sobre o que a está perseguindo. Ela corre, sem conseguir pensar em como terminará isso. As pernas doem, mas sua adrenalina não permite que ela sinta dor. Não grita, não emite um som, apenas corre enquanto suas esperanças de vida vão se esvaindo. Sabe que não conseguirá correr por muito mais tempo, e já vai perdendo a velocidade. A sombra a persegue cada vez mais perto, e a garota fecha os olhos para se preparar para o pior. Ela cai e abre os olhos, mesmo com todas as esperanças perdidas, ela quer ver o seu assassino. Quer saber quem se sujará com o seu sangue. A sombra toma forma, e a garota reconhece seu pai.

Naquele dia, o milharal amanheceu vermelho.

- Corta! Incrível, senhorita Rebeca, meus parabéns. Agora vá se limpar que esse odor de sangue falso impregna.

Distancio-me do local de gravação e encontro meu amigo Tobias tomando um café. Incrível como ele sempre está ali quando terminam as gravações.

- Esse filme vai ser um sucesso, sem dúvida - balbuciou Tobias, tentando não derramar o café que estava na sua boca.

- Realmente acha? Apenas espero que se saia melhor que os anteriores. Minha carreira de diretor está por um fio.

- Não se preocupe. A história desse filme, como sempre, está incrível. Contratamos pessoas melhores até. Aquela Rebeca? Nunca vi uma atriz tão linda. Deveria escrever alguma cena para ela aparecer nua.

- Adeus, Tobias.

Fui para casa. Não é uma mansão, nem um palacete, mas é algo que pude pagar com o dinheiro arrecadado dos meus filmes. Poucos realmente fizeram sucesso, como “Mortes obscuras” e “12 assassinatos”. Tenho essa paixão por filmes de terror, e acho que o grande culpado é o Hitchcock. Acredito que há certa satisfação em aterrorizar sua mente, mas com aquela âncora na vida real, sabendo que aquilo não está acontecendo com você. Não me imagino nunca em um filme meu, ou qualquer outro de terror. Talvez eu agisse pior que os personagens desse gênero.

Meus últimos filmes estão me dando prejuízo. São histórias complexas, com desfechos incríveis. A sociedade, porém, passou a odiar esse estilo. Preferem zumbis, ou qualquer besteirol sobrenatural. Um terror fácil e rápido. Não aprecio esse estilo moderno, pois prefiro um terror possível, com elementos da realidade, que nós convivemos. Psicopatas, traições, assassinatos, loucuras. Isso é o que as pessoas realmente deveriam sentir medo, e não de fantasmas que matam nos sonhos ou seres humanos que renascem e viram idiotas sedentos por carne humana. Desde o começo da minha carreira que eu tento mudar isso, mas sem sucesso. Maldita evolução tecnológica, tornou capaz a criação de coisas impossíveis e fez com que a população sentisse medo delas. Diretores de filmes de fantasma, zumbis ou de fantasmas e zumbis ao mesmo tempo são os mais ricos, atualmente. Eu ainda preciso juntar uma boa grana para colocar em prática as histórias que escrevo.

Que bom que mencionei escrever, pois as histórias desses filmes são ridículas. Já estão os rotulando como “Trash”. Não haveria rótulo melhor. Muitos são péssimos propositalmente, o que estraga toda a proposta do terror, haja vista que faz as pessoas rirem. Que espécie de ser humano teve a estúpida ideia de criar isso? Enfim. Tudo isso serviu para destruir as oportunidades para os filmes complexos. Essa alienação impede as pessoas de pensarem, querendo apenas desfrutar de histórias fáceis, mastigadas. Eu não conseguirei mudar isso nunca.

Aquele meu último filme, o da garota no milharal, foi um fracasso. Não concordaram com o final, sobre o pai ser o assassino. Preferiam que a sombra fosse algo sobrenatural, para que virasse um boneco à venda em qualquer loja de brinquedos, acredito. Não me vendo assim tão facilmente, mesmo que isso tenha custado a minha carreira de diretor. Perdi meu contrato e agora estou desempregado. Perdi o apoio das distribuidoras, agora só contratam diretores de filmes “trash”. Não vi mais o Tobias, nem aquela linda atriz chamada Rebeca. Estou sozinho.

Vou até a janela. A noite pôs o seu manto sobre o céu, cortada por poucos postes de luz mal distribuídos pela rua. O vento desarruma a pilha de folhas caídas da enorme árvore do meu vizinho, enquanto um cachorro – que mais parece um dragão – tenta alcançá-las no ar. De vez em quando passa uma pessoa, duas ou três, a passos ligeiros, sem olhar para os lados. A própria vida, realmente, é um filme de terror.

Sento-me na minha cadeira da escrivaninha, com a cabeça apoiada nas mãos. Minha mente me machuca com incertezas futuras.

Levanto minha cabeça e um espanto. Minha escrivaninha sumiu assim como tudo o que estava à minha volta. Estou em uma rua deserta? Está escuro demais e uma neblina dificulta minha visão. Percebo silhuetas de pessoas atravessando de um lado para o outro da rua, mas não reconheço ninguém. Até que a neblina diminui, um ar frio machuca minhas fossas nasaise um arrepio percorre todo o meu corpo. Reconheço todas as pessoas. Todas são atores que participaram de meus filmes, usando o figurino de seus respectivos personagens. A grande maioria com sangue na roupa, ou no corpo.  No meio delas, a garota do milharal – a bela Rebeca – atravessava a rua com uma faca atravessada no peito, sua blusa encharcada de sangue. Não parece sangue falso.

Olho para trás, mais atores no figurino de meus personagens atravessam a rua de um lado para o outro. Está real demais para ser um sonho, visto que o medo me corrói internamente. São todos que eu matei? Eu poderia ter impedido a morte de cada um, porém, com palavras, tirei a vida dos que criei para a história ter um desfecho interessante. Uma mais brutal que a outra. Acho que querem se vingar de mim; todo escritor acredita que é deus sobre suas criações. Deforma o que quer, mata quem quiser. Estou a encarar as minhas criações, atravessando uma rua deserta de um lado para o outro.

Avisto o final da rua, e meu medo se agrava. Não tinha percebido uma pessoa lá, tanto no final à minha frente, quanto às costas. As duas começam a caminhar na minha direção, e o medo me impede de se locomover. Devido à escuridão, não consigo reconhecer essas duas pessoas. Todos os personagens, que atravessavam a rua ensanguentados, pararam e viraram-se para mim, encarando-me com olhos mortos. Estou paralisado. Vejo-me em cada um daqueles olhos, morrendo da mesma forma que eles morreram. As duas pessoas já estão chegando perto, minha mente arde com o medo da morte.

Ambos estão encapuzados. Aproximam-se de mim, enquanto minhas mãos tremem. Não sei para qual dos dois olhar. Minha morte virá de qual? Qual se vingará do seu criador? Acredito que os dois também são criações minhas. Para querer vingar-se com a minha morte, deve ser as personagens que matei da pior forma. Será o garoto afogado pelo irmão? O rapaz esfaqueado pela namorada? Ou pior, a garota esquartejada pela mãe? Não quero nenhum desses finais. Eu os criei, não significa que os mereça. As duas figuras retiram o capuz, e os dois são a mesma pessoa. Alguém que eu não criei voluntariamente. O mundo esforçou-me para que os criasse. Contudo, não posso ser morto por eles. Não, não posso. Não agora.

Eu vejo o meu rosto nas duas pessoas.

Estou à beira de um abismo, literalmente. Todos sumiram, não percebi como. Olho para baixo e sinto uma extrema náusea. Sento-me, não há caminho para trás, nem para nenhuma outra direção. Estou sozinho, como sempre estive na minha vida. Talvez esse seja o motivo de eu gostar tanto de histórias macabras, pois a minha vida é uma. Meus pais morreram cedo, vivi com a minha tia com problemas alcoólicos que morreu quando me formei em Cinema. Não sei o porquê de eu estar lembrando toda a minha vida logo agora. Talvez seja essa a hora da minha morte.

Na minha mão há uma carta. Não sei como não a percebi antes. Tenho medo do que pode estar escrito nela. Nunca tive muitos amigos, nem parentes presentes. Será uma carta do Tobias? É a única pessoa que me vem à cabeça, por mais que faça muito tempo que não o vejo. Abro a carta: está endereçada para mim, escrita por quem vos fala. Não costumo escrever memorandos ou diários, por isso meu medo cresce só de pensar no que está escrito. Ainda assim, começo a ler pausadamente. Uma despedida vai se formando, mas não uma simples. Nela, despeço-me de tudo, todos e da vida. É uma carta de suicídio. Não acredito que foi escrita por mim, não pode ser. Rasgo a carta e a jogo no abismo. Essa dúvida se isso é real ou um sonho já me machuca. Ambas as possibilidades são obscuras. Se for um sonho, quer dizer que tudo isso faz parte do meu subconsciente. Toda essa culpa guardada, esperando a melhor oportunidade de transbordar e matar-me. Se for a realidade, então eu já estou morto há muito tempo.

Entrego-me ao abismo. Sei que a vida, para mim, já não é mais uma possibilidade. Enquanto caio, com o vento na direção contrária, fecho meus olhos, esperando não sentir dor na queda. Lembro-me de quando era criança e sonhava em poder voar um dia, só não sabia que seria dessa forma. O primeiro e último voo para fora da vida. Espero que minhas histórias não sejam esquecidas, mesmo que eu tenha matado vários em todas elas. A culpa, agora, está me matando.

Acordo em minha cadeira da escrivaninha, com a cabeça descansada nela. Não sei se sonhei, mas que dormi bastante, visto que já está de manhã. Eu poderia ter passado a noite escrevendo uma história nova, tentar vendê-la para estúdios e esperar que virem filmes. Por mais que eu saiba que não dará certo. Minha consciência ainda pesa sobre como será daqui para frente.

Olho para o lado e vejo um papel de carta totalmente em branco.

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