sábado, 6 de junho de 2015

Força Mortal.


Força Mortal




Quero a minha vida de volta
Destruidora abstinência
Ilustre indulgência
Que me mantém forte,
Apesar da morte!


A espada brilha no altar
O sino badala estridente
Oh, alma indolente
Que teima em não ressuscitar

Liberta a força que há em ti
Pobre ser vivo
Esquartejado e sacrificado
O teu sangue derramado
Sob o pentagrama
Enquanto eu jazo na lama
Das trevas

Satan,

Livrai-me do vómito
Livrai-me do óbito
Traz-me à vida
Não pela ceifa
Mas pela meita
Amo poderoso
Meu ser fogoso
Pelo murmúrio do vento para além do Norte
Pelo murmúrio do vento para além do Norte
Pelo murmúrio do vento para além do Norte
Fujo da morte
Faz-me Forte!
Fujo da morte
Faz-me Forte!



O meu nome é Abaddon, nome hebraico que significa destruidor.


Sou líder de uma banda de black metal, chamada “mortal Terror”. Há dois anos gravámos uma demo, e neste momento estamos a preparar o nosso primeiro álbum de originais. A banda ambiciona crescer e afirmar-se no panorama nacional e internacional de Black metal. A cover art (1) para a nossa capa foi encomendada à empresa luciferium war graphics, e as misturas finais do album vão passar pelas mãos de Eirik Hundvin, respeitado produtor Norueguês, mais conhecido por Pytten. Ele produziu álbuns de bandas como os Gorgoroth , immortal e Burzum. Este último, estava actualmente preso por ter sido condenado a 21 anos de prisão por ter assassinado euronymous, outro músico do meio black metal norueguês.


Eu sou guitarrista, vocalista e também escrevo todas letras das músicas. Este poema (força mortal) é o tema principal do trabalho que os “mortal Terror” vão lançar, intitulado “Oraculus diabolcum”.


Onde me inspirei para o escrever?

Apenas na minha essência, numa viagem longa que eu fiz pelas profundezas do meu ser, onde contactei com o meu verdadeiro eu - e me descobri satânico!


Após ter tido esta tomada de consciência, vasculhei tudo em busca de livros que me ajudassem a fundamentar esta minha convicção interior. Foi quando obtive o contacto de um grupo satânico da zona de Sintra, e após algumas insistências da minha parte, lá consegui ter uma reunião com eles, até que me aceitaram no grupo e me concederam o livro proibido: A “Bíblia satânica”.


Não nascemos ateus nem cristãos. Nascemos satânicos!

“Satan é indulgência e não abstinência!

Satan representa todos os denominados pecados, uma vez que todos eles conduzem à gratificação física, mental e emocional”



“Toda e qualquer criança é satânica assim que nasce e, à medida que vamos crescendo vamos perdendo toda a pureza e tornamo-nos “noutra coisa” diferente, por influência ou por imposição.”


Tenho reflectido muito sobre os dogmas da religião e sob os quais a nossa educação é erigida. A religião não é dada como algo garantido à nascença. Porquê que a religião cristã nos leva a negar os frutos da vida?

Porquê que temos que renunciar ao prazer dos sentidos?

Esta moralidade é uma fraude.

Enquanto crianças, somos indulgentes - Não nos privamos dos nossos desejos naturais e inatos. Fazemos tudo para obter o que desejamos num determinado momento.


Para o satanista o “diabo” é apenas uma figura cristã.

Eu venero-me a mim mesmo. Satan é uma palavra de origem hebraica, que significa” adversário”, opositor”, “inimigo”. Satan é o “opositor” de todo e qualquer Deus. Assim, o único Deus que eu reconheço, sou Eu próprio!


Assim diz a bíblia em que eu acredito – A satânica!


A minha mulher, Ângela, uma musa lindíssima que conheci num concerto dos “Moonspell”, não partilha desta minha tendência ideológica, mas é uma fiel companheira e uma excelente teclista - Eu amo-a acima de tudo.
Ela corresponde-me com todo o seu amor e pureza.

O mesmo já não posso dizer dos meus pais, que não aceitam esta minha atitude (o tornar-me satanista, e formar uma banda que invoca a morte, a violência e Satanás). Eles simplesmente cortaram relações e viraram as cotas a mim e à minha querida Ângela.

Eu até respeitava esta tomada de decisão por parte deles, pois em toda a sua vida foram Católicos praticantes, mas por mais que eu lhes tentasse explicar que, ter-me tornado satanista não implica adorar o demónio, eles simplesmente não aceitam.


Infelizmente, a decisão que eles tomaram foi a mais fácil: banir-me da família e deixarem de falar comigo. Compreender um jovem e entrar no mundo dele é sempre muito complicado para os progenitores… infelizmente.



O afastamento deles foi tao grande que até começaram a tecer mentiras sobre a minha pessoa. Sempre que eram questionados acerca da minha banda, eles desmentiam, inventando que não era eu o vocalista, mas sim alguém parecido comigo. Quando alguém lhes perguntava por mim, respondiam que eu tinha ido estudar para um colégio particular, em Lisboa.


Bem, a verdade é que eu e Ângela vivemos com sérias dificuldades financeiras!


Além da banda, eu e Ângela não temos absolutamente nada, (enquanto eles têm tudo). Eles devem ser as pessoas mais ricas da região de Ílhavo: São ambos médicos de profissão e são proprietários de duas clinicas de diagnóstico e radiologia. Ostentam luxos extravagantes, e habitam numa moradia enorme que lhes custou 200.000 euros!

Enfim, têm mesmo “tudo”, e ela tinha muita inveja disso!


Na segunda-feira passada, o proprietário da garagem onde a banda costuma ensaiar ameaçou-nos com uma acção de despejo, pois já tínhamos 2 meses de renda em atraso, - as economias dos “Mortal terror” tinham sido todas gastas na produção do álbum e o pouco dinheiro que sobejara, nem chegava para pagar a renda de um mês.

Andava ensimesmado em arranjar soluções, mas não as vislumbrava em lado nenhum, até que decidi ligar aos meus pais para me ajudarem. Mas a reacção deles ao telefone, foi muito má, acabando até por me por me rebaixarem e humilharem. Em fúria, desliguei o telefone na cara deles, completamente enlouquecido, pois fizeram-me sentir como se fosse um mendigo. O meu pai até teve a ousadia de me comunicar que me tinha deserdado, e que já tinha falado com o advogado da família para me excluir do seu testamento.


Quando regressou a casa, a minha doce Ângela não me conseguiu acalmar.

- O que eu mais queria era que eles morressem! – Bradei desesperado e cheio de fúria.

- Tem calma, meu amor. Eles não merecem o filho que têm! – Sussurrou-me a minha amada, numa tentativa vã de me consolar.


Eu era filho único.


Durante toda a minha infância todos os mimos e atenções eram apenas dirigidos a mim. Nunca me preocupei em arranjar emprego ou dedicar-me aos estudos, pois achava que tudo o que eles possuíam, um dia seria meu… mas afinal estava enganado.


Aos 15 anos comecei a sair e passei a assistir a concertos de bandas de Heavy metal, o que me influenciou de tal modo, que até deixei crescer bastante o cabelo. Gostava de me vestir apenas com cores negras. Fiz várias tatuagens com imagens satânicas e adornei o meu corpo com vários brincos, e piercings.

Mais tarde, formei a minha primeira banda de Heavy metal, Os “Black Demon”. Tocávamos em bares e pubs, mas nada de original, apenas coversde bandas de Heavy e thrash.

Mais tarde formei os “Terror Mortal”, e passados dois anos, ganhámos um concurso de bandas Hard Club de Gaia, o que nos ajudou a gravar umademo. Até aqui tudo bem, mas o que deixou os meus pais em pânico, foi a capa do CD, pois era uma exibição clara do demónio a possuir sexualmente uma freira. O conteúdo das letras era bastante agressivo, pormenor, que os deixou estupefactos.

Depois conheci a Ângela e mais tarde, saí de casa dos meus pais e fui viver com ela para um pequeno anexo alugado.

Ela e a banda eram a minha vida- mais nada me interessava. Mas este não era o futuro que eles tinham idealizado para mim. Então passei a ser tratado como um “bastardo”. Depois decidiram castigar-me” da forma mais rude que eu podia alguma vez imaginar – negarem-me tudo a que tinha direito.

Na sexta-feira, após ter estado a ensaiar com a banda, voltei a casa um pouco deprimido, pois tinha discutido com os restantes elementos da banda devido a divergências que já começavam a rebentar entre nós. Eu andava nervoso, pois não sabia como resolver estes problemas.

- Odeio os meus pais. O que eu mais queria era que eles morressem! – Desabafei naquela noite. Sentia-me desesperado.

- Eu também os odeio, amor. – Redarguiu Ângela num tom pesaroso.

- Se continuarmos assim, vamos ter de parar com a banda, amor.

- Mas a banda é tudo o que temos, querido. Foi tudo pelo que sempre lutaste – Afirmou ela.

- Não dá, amor. Temos que arranjar dinheiro. Temos que parar com a banda e arranjar um emprego, sei lá...

- Não, lindo! Os teus pais têm que nos ajudar. Eles são ricos, porra!

- Sabes que não posso contar com eles para nada. Até já me deserdaram, como tu sabes!

- Porque tu deixaste! A tua religião diz, “Satan representa bondade para aqueles que merecem e não amor desperdiçado em ingratos”. “Satan representa vingança e não dar a outra face”! – As palavras dela espancaram-me como murros no meu estômago.

“A tua religião diz… a tua religião diz… a tua religião diz… “


Paulatinamente, mas também de uma forma subtil, Ângela precipitou-me para “aquele abismo” que Allan Poe descreve no seu “Demónio de perversidade”, impelindo-me para os limites da minha loucura.
“Se algo lhes acontecesse, tudo aquilo seria nosso”...”Eles tratam-nos como mendigos, quando dizemos que precisamos da ajuda deles”...”Parece que gostam de mandar nas nossas vidas”...


“Algo tem de ser feito, Abaddon, faz algo”... “Algo tem de ser feito, Abaddon, faz algo”... “Algo tem de ser feito, Abaddon, faz algo”...
Estas frases, repetidas e proferidas pela voz doce e musical da minha linda Ângela, badalaram lugubremente no meu espírito, assolando-me noite após noite, até à data do eclipse solar, que coincidia com uma enigmática sexta-feira, dia 13 de Agosto.


Nessa manhã acordei completamente alucinado. Tinha sido atormentado durante toda a noite por pesadelos apavorantes. Olhei em redor do quarto, e apercebi-me que Ângela já tinha saído.
Sobre a mesa-de-cabeceira estava um bilhete deixado por ela:


Meu amor,

Na vida, temos poucas oportunidades para sermos felizes. Só se é realmente feliz quando fazemos aquilo que amamos, aquilo que nos ferve por dentro. Se achas que devemos ir trabalhar, tudo bem. Mas lembra-te que tens uns pais ricos, e se eles te deserdaram, (não tendo eles mais filhos), a quem vão deixar aquela fortuna toda? À igreja?...

Pensa nisto.

Volto à noite

Amo-te para sempre.

Beijos

Ângela


A minha estimada Ângela tinha razão. Pois os meus pais fartavam-se de doar dinheiro à igreja. Da última vez que a igreja precisou de fazer obras, foram eles que as pagaram. Foram “apenas” 20.000 euros...
Abandonei o apartamento com o desespero na minha alma.


A primeira coisa que fiz foi enfiar-me na tasca que fica logo em frente à minha casa, e logo ali emborquei quatro cervejas.

Segui caminho a pé até à casa dos meus pais, e a meio do percurso parei noutro café, onde bebi mais umas três cervejas com vários whiskys pelo meio. Repeti este ritual nem sei quantas vezes, durante toda a manhã. Ainda não satisfeito, meti alguns speeds no bucho.


Atravessei a ponte e observei a paisagem.


“O rio quando permanece na sua placitude, parece embalar as pequenas embarcações no seu regaço, tal como uma mãe acarinha um rebento no seu colo” – meditei.
Recordei-me da face terna da minha mãe e chorei. Contudo, as minhas lágrimas secaram sob o negror súbito que se apoderou, não do meu espírito, mas do... mundo! O eclipse estava a ocorrer e eu senti-me assombrado. Ai de mim!...


Agora suportava paulatinamente o despertar do assassino que se incubava no meu corpo. Em vão, tentei reprimi-lo, mas a sua malvadez era poderosa e apossou-se vagarosamente da minha alma.

E foi já metamorfoseado neste “carrasco” que me aproximei da casa “deles”.

Oh sim, a noite já mostrara a sua face, mas eu não. Eu não estava possuído! Antes pelo contrário. Os possessos não entendem nada de nada.


Contornei a casa até às traseiras e galguei o muro pelo local onde o fazia sempre, quando não queria que eles soubessem a que horas eu chegava a casa.

Eu estava bem disfarçado. Se alguém me visse, não podia afirmar que era eu - aquele que ali vivera tanto tempo. O “zorro”, o RottWeiller, aproximou-se de mim a rosnar, mas de imediato sussurrei o seu nome e ele reconheceu-me. Dei-lhe algumas festas no corpo, e serenamente fui amarra-lo na sua casota. Afastei –me e fiz-lhe sinal de silencio com o dedo,  o que ele obedientemente acatou.



Trespassei a porta das traseiras e penetrei pela casa dentro. A aparelhagem estava ligada e tocava “Gospel” - (que horror!).


Aproximei-me da sala, mas inesperadamente fui surpreendido pelo meu pai. Nem olhei para o rosto dele.

Puxei do punhal e descarreguei-lhe vários golpes acertando onde calhasse. Ele ainda tentou dar luta, mas quando o atingi no peito, foi quando o vi cair brutalmente no chão, ficando a arfar que nem um animal em aflição. Não imagino quanto tempo mais ele se aguentou naquele sofrimento, mas não deve ter sido muito.

Imediatamente a seguir, dei pela presença da minha mãe. Aproximou-se aos gritos, mas estranhamente, não lhe reconheci a voz.

Atirou-se a mim, tentando-me deter. Elevei o braço para a apunhalar, mas ela conseguiu desviar-se, prendendo-me a mão, mordendo-a depois, ferozmente. Este gesto despertou ainda mais a minha ira, o que me obrigou a desferir-lhe um pontapé na cabeça, que a arrumou de vez.

O efeito do álcool não me deixava ver com nitidez. Por isso esperei o momento oportuno para lhe dar um golpe que a imobilizasse, pois ela já se preparava para fugir em direcção à rua.


Ergui-me e corri atrás dela, prendendo-a pelo pescoço. De seguida, atirei-a ao chão e atingi-a com a lâmina no braço direito, o que a fez gritar estridentemente, ficando agarrada ao membro ferido. Num ímpeto, saltei para cima dela e desferi-lhe várias punhaladas no peito. O último golpe que lhe descarreguei tirou-lhe de imediato a vida. Ela nem gritou nem gemeu, apenas ofegou durante uns segundos, depois desfaleceu. Não perdi tempo a certificar-me se respirava ou não. Coisa estranha matar pessoas. Não é diferente de matar um animal, sabem?


Estava feito. O meu tormento tinha terminado ali, naquele momento.

A aparelhagem ainda tocava os horríveis cânticos religiosos. O Zorro agora ladrava estridentemente e ouvia-se em toda a vizinhança. Não havia de tardar, que a curiosidade daquela gente ávida por coscuvilhice aparecesse ali a bater à porta, para saber o que se estava a passar. Seguidamente, viria a polícia eu estava fodido.

Ting tong! - Hora de abandonar a casa, rápido!


Mas algo me dizia que eu tava a descartar coisas importantes, e eu não podia deixar as coisas assim. Apesar de ter calçado umas luvas descartáveis, eu também estava a sangrar. Portanto havia “provas” que me comprometiam seriamente. Tinha que pensar rápido – O que estava a ser difícil.


Tentei imaginar “algo” que eliminasse estas provas. Lembrei-me de um incêndio, e num ápice dirigi-me à cozinha, onde desapertei completamente a válvula do gás. Depois liguei os quatro bicos do fogão e deixei-os a libertar gás.
Seguidamente, abandonei a casa pelas traseiras e de lá atirei o isqueiro aceso para o interior da residência. O zorro ainda tentou correr atrás de mim na brincadeira, mas eu nem lhe liguei.


Não podia perder tempo nem deixar quaisquer vestígios. Quando o gás alcançasse a chama do isqueiro, havia de se dar uma explosão e em poucos minutos a casa ficaria em labaredas. O fogo consumiria os cadáveres que jaziam lá dentro e assim eu garantia um cenário ilusório de aparente “tentativa de assalto mal sucedido”, cujo intruso recorrera ao incêndio para ocultação das provas.  – Agora sim, eu estava a raciocinar.


Nunca cheguei a saber se a casa explodira ou não, pois não escutei qualquer som, que se assemelhasse a um estouro. Talvez devido à rapidez com que me ausentei do local, calculo. Tinha corrido velozmente pelo meio do matagal que se estendia pela zona envolvente da localidade, que eu tão bem conhecia. Tinha brincado ali durante todo meu tempo de escola...



Ao fim de alguns quilómetros, parei para estabilizar a minha respiração. Doíam-me os músculos das pernas, de tanto correr.

Olhei em redor. Inesperadamente, afiguraram-se-me várias recordações felizes da minha infância. Senti um vazio, e comecei a ficar cheio de frio. O “monstro” tinha-me abandonado. Oh, eu já não era “ele”. Tinha voltado a ser o Zé, como carinhosamente a minha mãe me chamava... – Tentei sacudir essas doces recordações do meu espírito, mas não consegui.


Então continuei a correr. Percorri mais alguns quilómetros até à localidade mais próxima, onde apanhei um táxi, que me levou até casa. Só pensava em cair nos braços da minha doce Ângela.


O apartamento estava estranhamente silencioso. Imaginei que ela pudesse ainda não ter voltado. Mas ela surgiu, vinda da sala, fascinantemente bela como uma diva. Trajava uma camisa de noite comprida, negra e transparente, que lhe realçava a sua volúpia desconcertante. O seu cabelo cor de Cobre estava completamente solto e caia-lhe sobre os ombros. Oh, como eu amava aquele seu estilo gótico, que tanto me seduzia e me deixava louco.

Senti o seu abraço forte e duradouro. Depois, pegou-me pela mão e levou-me para a sala, que estava iluminada por dois candelabros que seguravam longas velas brancas, que queimavam serenamente.


- Minha querida... – Sussurrei entre soluços agoniantes.


Ângela fixou-me, penetrando os seus olhos negros em mim. Não falou. O seu silêncio lúgubre levou-me a concluir que ela sabia o que tinha acontecido, tal como uma Deusa que conhece todos os passos do seu servo.

- Amo-te Abaddon.... – Murmurou ela com uma voz inexpressiva, pousando a sua mão suave sobre o meu cabelo.

Acabámos a noite a fazer amor. Amámo-nos como nunca, num clima de arrebatadora loucura e incessante desejo. Eu era louco por ela. Eu morria por ela. Eu matava por ela...


Às três e meia da madrugada, a porta da minha casa foi sacudida por violentas pancadas que me fizeram despertar numa perturbação inquietante. Ergui-me da cama e fui ver o que se passava. Olhei para Ângela também já estava acordada, mas mantinha uma expressão imperturbável.

- Quem está aí? O que quer? – Inquiri.

- Policia!...abra a porta imediatamente – Uma voz fria penetrou pela minha casa dentro, como um tiro no escuro.

Respirei fundo. Apertei o Baphomet  que trazia ao peito e abri a porta nervosamente. Tentei não demonstrar qualquer receio ou hesitação.


Deparei-me com três homens que se identificaram sendo da Policia Judiciária - estavam bastante sisudos.

Um deles ainda disse “boa noite”. O outro, que devia ser mais graduado, perguntou-me o nome e de seguida informou-me de que o Juiz de turno do tribunal de Aveiro emitira um mandato de captura, o que os obrigava a deter-me imediatamente.

Naquele instante senti-me como se o meu corpo tivesse ficado sem sangue. Olhei para o agente e ofereci-lhe os meus punhos, que ele agrilhoou com um par de algemas grossas e frias.


Abandonei a casa com os meus olhos fixos em Ângela, a quem eu dirigi um breve “amo-te muito” através dos meus lábios mudos. Depois fui abruptamente transportado para o Golf, que arrancou com grande velocidade.


Nas instalações da PJ fui sujeito a um extenso e fatigante inquérito por parte do chefe de brigada, que me informou sobre os crimes que eu era suspeito: Homicídio e tentativa de ocultação de crime.
Também me comunicou que havia testemunhas que declaravam ter-me visto no local do crime, na noite de sexta-feira, dia 13 de Agosto.


Ao fim de longas horas de interrogatórios, fui, por fim, guiado para  os calabouços húmidos, onde aguardei pelo desenrolar das investigações. Comecei a desconfiar que aqueles gajos deviam estar fazer “bluff” com aquela história das testemunhas, pois seria impossível alguém ter-me avistado por ali, até porque eu tinha tomado precauções para que ninguém me reconhecesse, ocultando sempre cuidadosamente o meu rosto.

Aguardei com a mais pura das descontracções que tudo se resolvesse, pois eu sabia que a polícia trabalhava mal, e jamais iriam encontrar as provas que me podiam incriminar de facto.


De manhã fui acordado pelo ruído perturbador do destrancar da porta gradeada da minha cela.


-Senhor José, venha comigo. – Ordenou o guarda prisional com uma voz firme.

- Com certeza, senhor guarda. Finalmente os “bófias” concluíram que estou inocente, não é verdade? – Indaguei eu, virando-me para o guarda que me escoltava.

-Não, senhor José. Você tem visitas!

- Visitas?... Quem? A minha Ângela? – Insisti ansioso.

-Não. São os seus pais! – A frase produzira o efeito de um tiro na minha cabeça. O guarda silenciou-se e isso deixou-me pensativo. Enquanto percorria o corredor que me levava à sala de visitas, o meu cérebro examinou todas as hipóteses de tal eventualidade ser real ou possível.

- Oh, deve haver um equívoco, os meus pais estão mor... – o meu discurso fora interrompido pela imagem assombrosa dos meus progenitores, que se mantinham com um aspecto saudável e...”vivos”!

- Pai?... mãe?... – Balbuciei, incrédulo. Depois até sorri, por os ver ali (com vida), na minha presença. Por outro lado, persistia a dúvida pavorosa que me martelava o espírito – A quem tinha eu tirado a vida, afinal?...


A minha mãe estava com um ar de quem não dormia há algumas noites. Pegou no auscultador e desferiu-me um olhar de franca piedade antes de começar a falar.

- Porque fizeste aquilo, meu filho? – Indagou ela com um tom carregado.

- O que fiz eu?... – Perscrutei inocentemente. A minha franqueza levou-os a pensar que eu estava louco.

- Entraste na nossa casa e apunhalas-te os teus tios que tinham sido convidados para passar uns dias lá em casa. – Afiançou o meu pai com bastante frieza.

- Eu?...

- Sim. Nós estávamos na cozinha, e eles andavam lá por casa...mas quando tudo aquilo começou a acontecer, escondemo-nos na dispensa, com medo. Meus Deus! Filho, porque fizeste aquilo?...Ainda fomos a tempo de fechar o gás, senão também já não estaríamos aqui! – Proferiu a minha mãe entre soluços.


Após escutar as palavras dela, ainda levei algum tempo até compreender o erro que realmente tinha cometido. A falta de lucidez, causada pelo álcool, levara-me à perturbação dos meus sentidos, o que me impeliu para uma loucura desmedida, atacando os inocentes que me apareceram à frente, sem sequer imaginar, que poderiam ser outras pessoas, que não os meus pais.

Senti o sangue a enregelar-se-me nas veias, e deixei de sentir o chão sob os meus pés. Tinha voltado as costas à luz, e agora tudo à minha volta eram sombras.


A loucura, não é mais do que a destruição da armadura da nossa lucidez. Falar dos meus pensamentos, agora não faz nenhum sentindo, pois nada me afecta, excepto o terror de enfrentar estas barras de aço por onde espreito todos os dias, para me recordar que existe um mundo aí fora, muito diferente deste que eu suporto aqui, com grande amargura.

- Oh Ângela, meu amor – Berro eu todas as noites do fundo deste “inferno”, que é o meu calabouço...


Mas a minha querida Ângela nunca me respondeu.

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