sexta-feira, 3 de julho de 2015

Sigismund.

Desta vez, a cocaína não estava ajudando em absolutamente nada.
Ele tentava conter o pânico que inundava sua mente e transbordava por seu corpo num tremor incontrolável.
Naquele momento,ele não se sentia o homem cujas teorias eram o assunto de acalorados debates, o gênio que desfizera a ilusão da Humanidade de que a razão estava sempre no comando.
Naquele momento, ele se lembrava do que seus olhos haviam visto e estava duvidando de sua própria razão. Lembrando do que havia visto aquela noite, ele se perguntava se não deveria pedir socorro ao Dr. Charcot, pois deveria estar tão insano quanto qualquer paciente dele.
Naquele momento, ele voltara a ser apenas o pequeno Sigismund, uma criança. Uma criança apavorada!
Naquele momento, deitado em posição fetal sobre o famoso divã que reservava para seus pacientes, ele nem de longe se sentia o grande Doutor Sigmund Schlomo Freud.
*****
Corria o ano de 1907.
Freud recebera uma carta onde um jovem francês pedia a sua ajuda. O rapaz, que assinava como Jean Pierre de Grenouille, declarava ter ficado muito impressionado pela leitura de A Interpretação dos Sonhos, de autoria de Freud.
Na carta, o jovem se apresentava como um caso clássico de licantropia, plenamente convicto de que se transformava em lobo nas noites de lua cheia.
Ao terminar de ler a carta, Freud sorriu, enquanto acendia um de seus famosos charutos.
- Ah, o que o inconsciente não faz para nos fazer lidar com os problemas que queremos enterrar.
Escreveu de volta ao rapaz francês, informando que aceitava tentar ajudá-lo.
Assim, Jean Pierre de Grenouille tornou-se o mais novo paciente de Freud.
Independente de qualquer coisa, o rapaz era um sujeito muito agradável. Apesar de ser muito jovem, ele apresentava uma maturidade fantástica. Freud atribuía isso ao fato de o jovem por ter perdido os pais tão cedo e por ser um homem que estava sempre viajando.
Só lamentava que o motivo que o levava a viajar tanto fosse uma fantasia absurda, a qual ele com certeza recorria para encobrir coisas com as quais seu consciente era incapaz de lidar.
O jovem inventara histórias fantásticas, sobre cavaleiros templários, juramentos de sangue, traição, vingança e - era esta que mais agradava a Freud - seu reencontro com mãe, reencarnada como uma das vítimas do misterioso assassino que aterrorizara Londres algumas décadas antes, o temido Jack, o Estripador.
Aliás, pelo que o jovem a sua frente lhe contava, a polícia inglesa realmente jamais iria saber a verdadeira identidade do assassino, já que o moço, em sua forma lupina, o havia devorado.
Desta história, Freud gostava particularmente da forma como o subconsciente trouxera a mãe, falecida há muitos anos - claro que não os quatrocentos anos que o jovem alegava, claro que não - para o papel de uma prostituta que ele havia resgatado e com quem pudera consumar enfim o desejo carnal que sentia por ela.
Finalmente um caso clássico do que Freud havia denominado de Complexo de Édipo, mas com um disfarce tão mal elaborado, que era perfeito para que Freud demolisse os argumentos dos que questionavam suas teorias.
Freud também estava admirado com a rapidez com que o jovem buscava contar o máximo possível de sua história e, questionado pelo terapeuta, informou que estava com pressa, pois a lua cheia se aproximava e ele teria que se esconder durante todo esse período.
Freud respirou fundo e olhou o rapaz nos olhos: era hora de começar a confrontar as fantasias, destruir as ilusões, encarar de frente o problema e proporcionar ao jovem uma existência digna.
Procurou a primeira trinca na muralha mal construída.
- Mas por que tanta pressa, Jean Pierre, se a lua cheia só começa em duas semanas?
- Tenho percebido que quanto mais a lua cheia se aproxima, a fera toma mais e mais conta de mim. Fico irritado, violento, e a força do lobisomem me transforma num risco para os que estão a minha volta. Veja o imbecil que cuidava das prostitutas de Whitechapel: deve ter sofrido muito com aquela mão quebrada.
- Mas você não aparenta mais do que vinte e dois anos, e estamos falando de algo que aconteceu há quase vinte anos atrás...
Jean Pierre olhou para Freud por um momento e começou a farejar o ar.
Freud achou aquela manifestação muito peculiar.
- Seu tom de voz e ainda mais o seu cheiro me dizem que não acredita em mim, Doutor Freud. Mas há um meio fácil de pôr fim às suas dúvidas. Tem papel e pena?
Sem esperar a resposta de Freud, o jovem levantou-se e caminhou até a escrivaninha do psicanalista.
- Pronto, aqui está. Não apenas o endereço do armazém, mas a exata localização da caixa onde estarei escondido.
Freud olhou para o jovem, um tanto aborrecido.
- Espera mesmo que eu vá a região das docas à noite, filho? É um lugar perigoso!
- Perfeito para que ninguém me incomode, não concorda?
Freud não estava gostando nada daquilo. O jovem estava tentando envolvê-lo em suas fantasias, num processo conhecido como transferência.
Freud ainda tentou argumentar:
- Mesmo que os meliantes que frequentam o lugar não me incomodem, você não estará transformado numa fera terrível, capaz de me matar com a ferocidade de um lobo?
- Sim, mas estarei inofensivo, enrolado em uma grossa corrente de prata. Fosse de ferro, a força dos elos sozinha não seguraria a criatura, mas a prata paralisa os lobisomens.
Freud desistiu daquela linha de argumentação. Afinal, como o jovem dominava o roteiro de sua fantasia, sempre teria respostas prontas, não importando o que lhe perguntassem.
Mas antes que pudesse tentar outra abordagem, o jovem farejou outra vez o ar e sorriu para Freud:
- Não precisa dizer nada, doutor. Seu cheiro já me garantiu que o senhor estará lá.
****
Um cheiro não mente.
Por isso, naquele fim de tarde da primeira noite de lua cheia, mais um mendigo vagava entre os tantos que habitavam a zona portuária de Londres. Afinal, alguém como Sigmund Freud não circularia abertamente naquela região, muito menos a noite.
Achar o armazém e a caixa não foi difícil. Abri-la também não representou nenhuma dificuldade.
Como prometera, lá estava Jean Pierre, usando roupas folgadas, com o corpo envolvido em uma grossa corrente de prata.
O jovem parecia estar em transe. Imóvel, não respondeu aos chamados de Freud, que estava impressionado ao ponto que o jovem chegava para aproximar suas fantasias da realidade.
No céu, os últimos raios de sol se escondiam, dando lugar à noite, e com ela, a lua cheia.
O efeito não foi imediato, o que fez Freud começar a acreditar que estava bancando o idiota.
Já estava se resolvendo a ir embora quando percebeu o pálido brilho azul que começou a emanar do corpo do jovem.
Estupefato, percebeu como lentamente o brilho ganhou intensidade e a transformação propriamente dita começou.
Começou pelas extremidades dos corpo: mãos e pés iam se alongando mais e mais e as unhas cresceram e se tornaram garras afiadíssimas.
Na face, a região da boca ao nariz começou a se estender, formando um alongado focinho, que levou expulsou do rosto do jovem qualquer sinal de humanidade.
As orelhas moveram-se para um ponto mais alto na cabeça, e de lá começaram a alongar-se, tomando um formato pontiagudo.
Os pelos começaram então a crescer, completando a transformação. O homem se fora para dar lugar a fera.
Freud observou tudo aquilo estático, apavorado, mas incapaz de fugir.
A criatura permaneceu imóvel, como Jean Pierre dissera que seria. Enquanto houvesse a corrente de prata a envolvê-lo, não representaria perigo para ninguém.
Freud não se lembraria disso mais tarde, mas teve o cuidado de fechar a caixa antes de ir embora.
Vagou pelas ruas de Londres até chegar ao seu consultório, onde ficou tentando absorver tudo que havia visto.
****
Uma semana mais tarde, Jean Pierre não se surpreendeu quando o Doutor Freud se recusou a recebê-lo. Não podia culpar o médico por isso.
Era hora de deixar Londres mais uma vez.
****
Trecho extraído da Wikipédia:
"Os primeiros anos de Freud são pouco conhecidos, já que ele destruíra seus escritos pessoais em duas ocasiões: a primeira em 1885 e novamente em 1907. "

Nenhum comentário :

Postar um comentário